domingo, 22 de novembro de 2009

A CABANA

SEGUE UMA CRÍTICA DE UM PROFESSOR DO SAT (Seminário Anglicano de Teologia) acerca do livro de ficção mais lido no momento. Se você já leu o livro não deixe de ler esta crítica, é muito interessante.



A Cabana - Tenda da Verdade ou Abrigo de Heresias?
Impressões e Reflexões de um Ministro Reformado
Rev. Marcus O. Throup

Introdução
Não pretendo fazer uma detalhada análise do livro A Cabana, de William P. Young (Sextante, Rio de Janeiro, 2008), muito menos uma resenha crí¬tica. O meu objetivo, dentro da perspectiva reformada é simples “tecer alguns comentários e tirar algumas conclusões consoantes ao teor e valor teológico da obra por meio de uma série de reflexões”. Essas reflexões provém de uma leitura inicial, isso sendo o caso, trata-se de opiniões embriônicas e impressões que poderão sofrer adaptações e (ou) correções posteriores.
Já que o foco do presente trabalho serão as questões que tangem a espiritualidade do livro, não comentaremos, a não ser de passagem, a arte literária do autor ou quaisquer outros assuntos que, embora válidos em si, fogem da nossa proposta. Pretendo, por outro lado, tomar como espécie de parceiro de diálogo a avaliação crí¬tica deste livro por Norman L. Geisler e Bill Roach[1]. De todas as reações e respostas ao livro disponí¬veis em lí¬ngua inglesa, achei essa a mais interessante, por ter sido escrita por tão renomado e influente teólogo reformado (Geisler). Em antecipação de possíveis objeções, preciso deixar claro que escrevo com a presunção que a maioria já esteja familiarizada com a obra, e, por isso, dispenso qualquer descrição prolongada da obra como um todo, me limitando a uma breve apresentação da mesma. Reconheço que como o autor nos urge a reconhecer que lidamos com uma obra de ficção, concedendo que, ao pé da letra, seria injusto tratá-la como se fosse um ensaio em teologia sistemática[2].
Por outro lado, como se sabe que qualquer gênero literário é um veí¬culo para a comunicação de verdades ou inverdades, em um mundo onde o público tende a dar crédito ao fictí¬cio (lembramos da reação popular ao “Código Da Vinci” de Dan Brown), a identificação e avaliação das afirmações teológicas provenientes de qualquer obra cristã mesmo fictí¬cia se tornam distintamente importante para aqueles que se preocupam com a preservação da sã doutrina da Igreja de Cristo.

O pano de fundo e história básica de A Cabana
Embora classificado como ficção cristã, na versão inglesa de A Cabana há uma secção final, onde o autor William P. Young explica que a sua luta para responder às grandes questões existenciais e sua própria dissatisfação como estudante de um seminário cristão o motivou a escrever o livro[3]. Em 2005, Deus teria revelado a ele que aquele seria o ano do Jubileu, e a partir desta experiência Young escreveu a obra cujo protagonista Mackenzie (Mack), é consciente e confessadamente modelado no autor.
A história do livro gira em torno de um suposto encontro com Deus em uma cabana, após Mack ter recebido um convite escrito de Papai Deus Pai. Mack tem um passado trágico, tendo sido abusado fisicamente pelo pai, o qual (significativamente para os propósitos de Young) era um líder da igreja. Mack teria envenenado o próprio pai e abandonado seu lar, e embora não predomine na história, o relacionamento trágico com seu pai e a possibilidade do perdão e conserto dessa relação funciona como elemento sub-narrativo.
O fio principal da história diz respeito a filha casula de Mack, Missy. Missy foi sequestrada e morta por um maníaco, assassino serial de crianças. À luz desta configuração biográfica a narrativa nos apresenta um homem pai de família normal lutando com Deus e consigo mesmo para entender os porquês das tragédias e sofrimentos da vida humana.
A Cabana, portanto, é um ensaio na área de teodicéia e a temática da existência do mal e o problema do sofrimento relacionado à crença em um Deus que é justo, amoroso, e onipotente. Porém, a obra aborda outros temas teológicos, tais como a natureza de Deus, a questão da salvação em Cristo, o pecado e o castigo divino, o arrependimento e o perdão, mas, sempre da perspectiva crítica daquele que questiona o cristianismo ortodoxo e desacredita na igreja como instituição.

A quebra de paradigmas religiosos e a apresentação nada ortodoxa da Trindade
Preponderante em A Cabana é a preocupação do autor com a quebra de paradigmas religiosos consideradas como estereótipos. As palavras “verifique a verdade de seus paradigmas, os seus padrões, daquilo em que você acredita” (184) poderiam ser a máxima da obra. Em cada passo o protagonista Mack é obrigado a repensar seus conceitos sobre Deus “Deus Pai, Papai” é uma mulher negra; Jesus “para a surpresa de Mack “não é um homem branco e sim judeu; além do mais, não é bonito; o Espí¬rito Santo aparece como personagem feminina “a asiática Sarayu”[4].
Se o aparente iconoclasmo da apresentação da Santíssima Trindade nos parece um tanto chocante ou assustador (reação que o autor queria provocar nos seus leitores), precisamos ler nas entrelinhas e entender essa crí¬tica a partir do seu contexto cultural. Por um lado conhecemos muitas igrejas nos Estados Unidos que pregam a sã doutrina e crescem com vida em Deus. Todavia, sabemos também que existe um lado digamos, sombrio do protestantismo norte americano. Alguns setores da igreja estadunidense ainda hoje estão caracterizados pelo apartheid (igrejas de brancos x igrejas de negros), por um chauvinismo opressor, por um alienado fundamentalismo introspectivo e dualista, e um tradicionalismo pelagiano e moralista.
Que Deus Pai, “Papai” é uma mulher negra e o Espí¬rito Santo uma mulher asiática, sugere que estamos diante de uma satí¬rica denúncia desse racismo e patriarcalismo. A surpresa de Mack que Jesus não é um homem branco e, sim, um judeu expõe a ignorância religiosa tí¬pica da cultura (popular) ocidental de um modo geral, levantando simultaneamente e de forma leve a questão do anti-semitismo[5].
Semelhantemente, o fato que Papai gosta de escutar funk e blues[6] e não como Mack imagina música sacra representa, presumivelmente, a tentativa do autor de desmascarar um rí¬gido moralismo que se isola da sociedade em uma atitude farisaica, maniqueísta e intolerante. Imaginemos que aqueles que são alvo da crí¬tica condenariam sumaria e precipitadamente qualquer composição que pudesse ser rotulada música do mundo.
Para ser justo ao autor, é importante registrar que as inesperadas personificações de Deus, com a legítima exceção de Jesus, não são absolutas, e, em conexão com isso, as palavras explicativas de Papai quanto ao gênero de Deus soam não meramente como bom senso, mas como boa teologia: “Eu não sou masculino nem feminino, ainda que os dois gêneros derivam da minha natureza” (83)[7].
Todavia, para o cristão ortodoxo, independente da possí¬vel validade profética da radical representação da Santí¬ssima Trindade em A Cabana, há dificuldades a nível teológico. Por exemplo, embora Deus afirme: “Sou um só Deus e sou três pessoas, e cada uma das três é total e inteiramente o um” (91) é verdade, como observam Geisler e Roach, que do ponto de vista doutrinário o retrato que Young faz da Trindade se inclina ao triteísmo.
Conforme Young, a unidade de Deus não é em uma só essência (natureza), segundo a postura ortodoxa. É, pelo contrário, uma união social de três pessoas separadas[8].
Novamente, segundo Geisler e Roach a negação de qualquer esquema de hierarquia na Trindade choca com preceitos bí¬blicos referente à submissão do Filho ao Pai. Em seguida criticam a visão igualitária de Deus apresentada pelo autor. Mas, essa crí¬tica é apenas parcialmente válida. Vale lembrar que gigantes da ortodoxia como Atanásio e Agostinho de Hipona insistiram no status igual das três pessoas da Santíssima Trindade[9]!
Não é que Young esteja errado em enfatizar a unidade e igualdade das três pessoas da Trindade, na verdade, sua apresentação do amor que existe na divindade é convincente e original. Tampouco o autor erra ao expor o institucionalismo hierárquico (frequentemente falho e corrupto) que caracteriza muitas religiões mundiais: qualquer cristão conscientizado assentiria às palavras do personagem Jesus, “uma quantidade enorme de coisas que são feitas em meu nome não tem nada a ver comigo” (166). Porém, ao fundamentar seu anti-institucionalismo religioso na sua releitura das interrelações da Trindade, o autor corre o risco de jogar o beber fora junto com a água do banho. Como Geisler e Roach afirmam, o relacionamento hierárquico de submissão e obediência em amor da Trindade que estar evidente nos evangelhos é o padrão sadio para a vida humana em famí¬lia, igreja e sociedade. Young é infeliz na medida em que negligencia ou exclui essa dimensão do ensino escriturí¬stico, e ao optar pela cabana vazia em preferência à convivência de uma comunidade cristã se esquece das palavras bí¬blicas: “Não abandonemos a prática de nos reunir, como é o costume de alguns, mas, pelo contrário, animemo-nos uns aos outros, quanto mais vedes que o Dia se aproxima” (Hb 10.25)[10].
O que mais preocupa o leitor ortodoxo na versão Youngiana da Trindade seja a escolha do nome “Sarayu” para o Espí¬rito Santo. Em consciente paralelo à etimologia do termo bíblico ruah, Sarayu, segundo o autor, significa “vento”. Todavia, o nome Sarayu é oriundo das escrituras hinduí¬stas onde representa um rio mí¬tico em cuja margem teria nascido o deus Rama[11]. Isso nos leva em direção às próximas considerações.

A questionável soteriologia de Young
A Cabana, embora estritamente falando não compactue com o pluralismo religioso, parece tender ao universalismo ou pelo menos a uma compreensão inclusivista da salvação. Em um trecho do livro bastante polêmico, Jesus, após confessar que não é um cristão, explica ao protagonista Mack que:
Os que me amam estão em todos os sistemas que existem. São budistas ou mórmons, batistas ou muçulmanos... Não tenho desejo de torná-los cristãos, mas quero me juntar a eles em seu processo para se transformarem em filhos e filhas do Papai, em irmãos e irmãs, em meus amados.
- Isso significa que todas as estradas levam a você?
De jeito nenhum “sorriu Jesus. ... A maioria das estradas não leva a lugar nenhum. O que isso significa é que eu viajarei por qualquer estrada para encontrar vocês... (168-9).
A frase chave aqui seria a declaração de Jesus referente aos seguidores de outras religiões: “Não tenho desejo de torná-los cristãos”. Mas, o que é que significa isso exatamente? É possí¬vel sustentar a partir do contexto do capí¬tulo (o de um diatribe contra a religião organizada) que esta afirmação diga respeito à adesão ao cristianismo, isto é, à igreja como instituição, e não a conversão a Cristo. Porém, isso não seria a leitura natural do texto. A afirmação, entendida à luz da sua complementação: “A maioria das estradas não leva a lugar nenhum. O que isso significa é que eu viajarei por qualquer estrada para encontrar vocês” representa o inclusivismo, argumento que a salvação é em Cristo, mas que Ele se faz presente a pessoas de outras religiões, podendo salvá-las através de crenças não cristãs e não necessariamente centradas na cruz do Calvário. As palavras de Jesus: “quero me juntar a eles em seu processo [ênfase minha] para se transformarem em filhos e filhas do Papai”, parece apoiar essa conclusão. Se esta for a interpretação correta deste trecho, fica evidente que o mesmo traz sérios problemas para o leitor ortodoxo cuja doutrina da salvação é exclusivista (Atos 4.12; Jo 14.6)[12].
Além de um equí¬voco quanto à encarnação “Young transmite a idéia de que todas as três pessoas se encarnaram enquanto a Bíblia deixa claro que a encarnação envolve apenas a segunda pessoa da Trindade[13] “a teologia da cruz de A Cabana é também suspeita. Deus Pai é descrito como tendo cicatrizes no punho (206), como se sofresse na cruz de modo igual a Jesus. Embora seja uma metáfora comovente, confunde os papéis desempenhados pelo Pai e Filho no processo salví¬fico e soa como heresia[14]. Igualmente, em referência a Mateus 27.46, a negação de uma separação de fato do Pai e do Filho no Calvário: “Independente do que ele sentiu no momento, eu nunca o deixei” (86), vai de encontro à teologia reformada, a qual sustenta que tal separação realmente aconteceu, pois ao morrer na cruz Jesus tornou-se pecado por nós, a fim de que “nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21)[15].

A inversão das fontes da teologia e a redução da importância da Bí¬blia para comunhão com Deus
Outro aspecto alarmante de A Cabana é a sua inversão da hierarquia das fontes da teologia. Desde Richard Hooker no século XVI, teólogos têm estabelecido que Deus se revela através das Escrituras Sagradas, a Razão humana e a Tradição, acrescentando posteriormente a quarta categoria de Experiência. Para teólogos reformados, a Bíblia é a nossa suprema fonte no que diz respeito à revelação de Deus, a experiência sendo interpretada à luz dela. Na obra de Young, porém, onde operam claras tendências ao misticismo, a experiência do personagem principal de novas revelações pessoais prevalece, a Bí¬blia sendo interpretada a partir dessas experiências.
Está claro que Young faz inumeráveis alusões às Escrituras Sagradas e algumas das suas conclusões são biblicamente sustentáveis e até teologicamente saudáveis[16]. É, portanto, sumamente irônico que A Cabana como um todo solapa a importância da Bí¬blia na vida do cristão. Em um dado momento na cabana (105), antes de dormir Mack começa a ler a Palavra de Deus, mas, a sua leitura é encurtada, pois Deus desliga a luz do quarto! Não precisamos perguntar que tipo de mensagem o autor quer passar com tal detalhe...
De modo geral, como muitos que procuram se livrar de aspectos da ortodoxia bí¬blica, Young parece utilizar um argumento “espí¬rito contra letra” em uma distorção do ensino do apóstolo Paulo. Assim Young critica de forma bastante genérica “e, portanto, injusta “a maneira pela qual se ensina a teologia básica nas igrejas”.
Reconhecemos, porém, que em uma cultura onde o fundamentalismo bí¬blico é o solo fértil para seitas pseudo-cristãs, torna-se necessário o questionamento do uso que se faz da Bíblia. Nesta conexão, não obstante as rotineiras generalizações quanto à escola dominical, as afirmações nas páginas 184-5 que a Bíblia não se trata de um livro de regras, e, sim, um livro através do qual se relacionar com Deus parece teologicamente relevante no contexto norte americano.

A abordagem de Young quanto ao problema do mal e sofrimento
O cerne do trabalho de Young é a teodicéia, popularmente resumido por meio de perguntas como: se Deus é bom e justo, por que existe o mal e o sofrimento no mundo? Em A Cabana o questionamento peculiar do personagem Mack se relaciona ao assassinato terrí¬vel da sua filha Missy: por que Deus teria permitido isso acontecer? Papai (Deus Pai) responde:
Eu sabia que minha Criação iria se rebelar, que escolheria a independência e a morte, e sabia o que me custaria abrir um caminho para reconciliação. A independência do ser humano liberou o que parece a você um mundo de caos aleatório e apavorante. Eu poderia ter impedido o que aconteceu com Missy? A resposta é sim.
Mack olhou para Papai, os olhos fazendo a pergunta que não precisava ser verbalizada. Ele continuou:
- Primeiro, se não tivesse havido a Criação não haveria essas questões. Em segundo lugar eu poderia ter optado por interferir ativamente no que aconteceu com ela. Jamais considerei a possibilidade de deixar de criar, e interferir no caso de Missy não era uma opção, por causa de propósitos que você não pode entender agora... (206).
O diálogo continua. Deus afirma seu amor pelo Mack, e Mack afirma que confia nele, mesmo sem “entender direito” (207). Mesmo que a fala de Deus: “interferir no caso de Missy não era uma opção, por causa de propósitos que você não pode entender agora” parece escapismo da parte do autor, porém, no campo de teodiceia está evidente que há muito que está atualmente fora do nosso alcance intelectual.
Em linhas gerais, o estudo de Young sobre a teodiceia segue o ensino bí¬blico. Primeiramente, assim como nas Escrituras Sagradas, está claro em A Cabana que de maneira nenhuma Deus está responsável pelo mal no mundo, mas que, pelo contrário, ele é capaz de criar o bem em meio ao mal:
Mack, eu crio um bem incrí¬vel a partir de tragédias indescrití¬veis, mas isso não significa que eu as orquestre (173).
Em segundo lugar, a existência do mal nessa vida é atribuí¬da ao pecado do homem: “Todo o mal decorre da independência, e a independência foi a escolha que vocês fizeram” (178). Em terceiro lugar, o veredicto escatológico do livro partilha da esperança que se ler nas Escrituras Sagradas: “O mal é o caos, mas não terá a palavra final” (178), poderí¬amos acrescentar que a palavra final pertence ao Senhor Jesus, o alfa (iní¬cio) e Ômega (fim).
Entretanto, Young exibe uma hamartiologia [a doutrina do pecado] seriamente errante ao negar que Deus castiga o pecado[17], e, ao contemplar o mal apenas de forma passiva, “o mal é uma palavra que usamos para descrever a ausência de Deus” (123-4). A terminologia grega do Novo Testamento revela que o mal em forma de pecado tem tanto a dimensão passiva (de não acertar o alvo), como a dimensão ativa (de transgredir a lei de Deus).
Mesmo que Young tente evitar criar a impressão de que Deus esteja limitado no que diz respeito ao mal e o sofrimento, pode ser que a sua insistência que as escolhas humanas têm de prevalecer, acabe transmitindo a idéia de uma deidade que gostaria de ajudar, mas cujas mãos estão amarradas “pelo menos, por enquanto”. A Bíblia não apresenta essa visão tí¬pica de Process Theology e a chamada teologia relacional. Na verdade, embora segundo os seus divinos propósitos Deus permita o sofrimento como consequência do pecado, toda a escritura testifica que quando Ele quiser, Deus age por intervenção direta em determinadas situações na vida de determinadas pessoas.

Conclusão
Na Inglaterra, há mais de 300 anos, um pregador e autor cristão foi encarcerado às ordens da autoridade eclesiástica. O nome do prisioneiro era John Bunyan, e o livro que passou a escrever na cadeia, O Peregrino, um clássico de ficção cristã protestante (o primeiro exemplo do gênero moderno!?) o que tem se tornado fonte de encorajamento espiritual para crentes do mundo inteiro.
Ao terminar a leitura de A Cabana, alguns líderes cristãos querem fazer a William P. Young o que foi feito a Bunyan[18]. Outros se empolgarão com a leitura e considerarão Young um herói da fé[19]. Portanto, perguntemos se um dia, no futuro, o livro se tornará um novo O Peregrino como alguns têm sugerido. A minha resposta é não.
Embora o livro esteja repleto de alusões escriturísticas e referências à Bí¬blia, diferente de “cristão” em O Peregrino, para Mack, a Bí¬blia não representa a arma com a qual combater as forças do mal, nem a fonte principal de revelação divina. Cheguemos a conclusão que o princí¬pio reformado sola scriptura, que caracteriza a obra de Bunyan, não tem lugar no trabalho de Young.
É verdade que muitos resenhistas norte-americanos e internacionais têm falhado em não analisar o livro dentro do contexto religioso dos Estados Unidos, e temos visto que como espécie de protesto contra uma religiosidade rí¬gida e doentia, A Cabana talvez seja avaliado positivamente. Por outro lado, o seu anti-institucionalismo e rejeição total da Igreja como entidade social e histórica contraria o ensino de Cristo. Young precisa enxergar que não se corrige os erros da Igreja por fugir dela, e, sim, por persistir nela e tentar reformá-la por dentro.
Para críticos brasileiros será fácil condenar a obra em prol do seu débio conteúdo doutrinário. Talvez o livro não tenha muita relevância no contexto do cristianismo brasileiro. Contudo, para aqueles que conhecem mais de perto a realidade da sociedade pós-cristã do mundo anglo-saxão, com importantes ressalvas A Cabana tenha certo valor no combate ao secularismo, ateí¬smo e anticristianismo que predomina naquele meio. Contudo, para alguns leitores será mais uma justificativa para a adoção de uma perspectiva relativista, pluralista, e sincretística no que diz respeito a espiritualidade.
Não é um livro que eu recomendaria ao neófito; não é um livro que seja naturalmente estudado no âmbito da instrução de leigos. Para ser justo ao autor, este não seria o propósito do livro. É, porém, um livro fascinante, que talvez seja interessante para análise em seminários teológicos, onde com o auxí¬lio de professores capazes de mostrar os seus erros, A Cabana seja estudado cuidadosamente onde se aplica o princípio paulino: “examinando tudo, conservai o que é bom” (1 Ts 5.21).
É justamente isso que temos tentado fazer aqui.



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[1] GEISLER, L. Norman. ROACH, Bill. The Shack: Helpful or Heretical? A critical review by Norman L. Geisler and Bill Roach, em www.worldviewtimes.com
[2] Embora contenha observações importantes, a avaliação feita pelo teólogo renomado Norman Geisler me parece, às vezes, incorrer neste erro.
[3] É uma pena que a editora brasileira dispensou esse trecho, o qual contém valiosos insights sobre o livro.
[4] A objeção de Geisler é caracterização fí¬sica e corporal de Deus Pai e Deus Espí¬rito (somente Jesus seria um ser corporal) parece um tanto injusto, uma vez que lidamos com protagonistas em uma história. Se Young não devia ter representado a primeira e terceira pessoa da Trindade dessa forma, poderíamos questionar como exatamente a representação devia ter sido feito neste meio literário.
[5] Enquanto Geisler e Roach condenam a representação alternativa da Santí¬ssima Trindade notando a insatisfação de Young com a doutrina ortodoxa, parecem não enxergar o valor potencialmente “profético” dessa representação como uma crí¬tica ao modus vivendi de muitas igrejas da sua terra.
[6] Cf. p.81.
[7] Não que chamemos Deus Pai de “mãe” ou optar por uma hermenêutica feminista, mas, diferente da categórica negação de Geisler e Roach, há lugares nas Sagradas Escrituras onde o aspecto, digamos, feminino de Deus aparece metaforicamente, ex. Is 66.10-13.
[8] Por outro lado, poderíamos fazer a mesma crí¬tica de teólogos profissionais (notavelmente Jurgen Moltmann), e sabemos que nunca foi tão fácil representar de forma equilibrada e misteriosa a simultânea individualidade e unidade do Deus trino. Será que é justo pedir do autor tanta precisão em uma obra desse tipo?
[9] Da parte de Geisler e Roach falta uma explicação em termos da distinção entre o trinitarianismo imanente (como Deus é em sua essência, ou seja, a sua natureza em si) e o trinitarianismo econômico (como Deus é na sua auto-revelação ao mundo). O consenso ortodoxo é que existe na Trindade uma igualdade essencial, mas uma submissão (do Filho ao Pai e do Espí¬rito aos dois) na sua operação “não que submissão sugira superioridade e inferioridade; falamos apenas em papéis distintos”.
[10] Young gasta energia e tinta em desconstruir a Igreja como instituição, mas reconhece que a Igreja como conceito demanda relacionamentos e a construção de vida em comunidade (cf. a discussão sobre a Igreja na página 165). O problema é que ele não oferece nenhuma solução construtiva para uma reconstrução da Igreja, se reservando a abstrações. E uma coisa é derrubar aquilo que está errado; E outra coisa cultivar o que está certo e construir um paradigma saudável.
[11] No gênero ficção cristã, é comum utilizar nomes e simbologia provenientes de mitologias pagãs. J.R.R. Tolkein e C.S. Lewis fizeram uso da mitologia nórdica e celta nas suas obras fictí¬cias. O problema aqui é a identificação da terceira pessoa da Trindade com elementos míticos oriundos de uma religião não cristã, o que parece, no mí¬nimo, um sincretismo desnecessário e desconcertante.
[12] Preocupados em citar textos provas que garantam a particularidade da salvação em Cristo, Geisler e Roach parecem desperceber a sutileza ou ambiguidade (proposital?) da narrativa aqui. Seria, no mí¬nimo, importante comentar esta dimensão.
[13] “Quando nós três penetramos na existência humana sob a forma do Filho de Deus, nos tornamos totalmente humanos” (89).
[14] Geisler e Roach rejeitam qualquer possibilidade do sofrimento de Deus Pai citando o patripassionismo [heresia primitiva segundo a qual Deus Pai teria sofrido na cruz também], alegando que tal noção herética fere o princí¬pio da imutabilidade de Deus (o sofrimento implica mudança). Por outro lado, a ausência total de qualquer ordem de sofrimento da parte do Pai (pensemos em termos emocionais ou espirituais) tem sido contestado por alguns teólogos modernos da tradição luterana, e, se por um lado, a constatação dela resolve algumas dificuldades teológicas, certamente cria outras.
[15] Cf. STOTT, John, A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2004, pp.70-71.
[16] O tratamento do perdão no livro me parece ser largamente fiel ao testemunho bí¬blico, e potencialmente útil.
[17] Veja as constatações na página 109.
[18] Geisler e Roach?
[19] Até agora o livro tem sido recebido favoravelmente por Eugene Peterson e o cantor Michael W. Smith entre outros.


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Rev. Marcus Oliver Throup; é Presbítero da Diocese do Recife; Secretário Diocesano de Relações Internacionais; membro da Equipe Pastoral da Con-Catedral Anglicana da Ressurreição, João Pessoa-PB; Capelão do Seminário Teológico Anglicano (SAT-PB).

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